Por Gleisi Hoffmann*
Parece até absurdo imaginar que nos dias atuais, cercados como estamos de tantas informações em tempo real e bombardeados de inúmeras fontes de conhecimento, ainda tenhamos de indagar e de formular essa preocupação: quem, afinal de contas, se ofende com a celebração da consciência negra no Brasil?
O Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de novembro, integra o calendário oficial brasileiro desde 2003, com a publicação da lei 10.639, sancionada pelo Presidente Lula, junto com a primeira alteração feita nas diretrizes e bases da educação para tornar obrigatório, em toda a rede de ensino no Brasil, o estudo da história e da cultura afro-brasileira.
Cinco anos depois, o próprio Presidente Lula publicou a lei 11.645/2008, para contemplar também o estudo dos povos indígenas nos currículos escolares de todo o País. A data de 20 de novembro, portanto, é feriado em diversas cidades e estados brasileiros, aprovado em lei, após debates, resistência e convencimento da sociedade.
Não foi à toa que a instituição do dia de reflexões sobre a consciência negra no calendário oficial brasileiro se deu por dentro das diretrizes e bases da educação. Porque é justamente na educação que reside o esforço e a esperança em rompermos e superarmos séculos de discriminações e preconceitos arraigados injusta e perversamente na formação cultural da nossa gente. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população negra e a auto-identificada como parda no Brasil somam 54% do povo brasileiro. Mas inúmeros outros indicadores socioeconômicos evidenciam as disparidades nas condições de vida e de acesso a oportunidades entre a população, ancorados, bem no fundo e de maneira nem sempre velada, no preconceito e na discriminação étnico-racial.
A violência também discrimina
Podemos citar aqui as desigualdades salariais, de renda, no acesso a serviços e até no ingresso e permanência nas universidades ou mesmo as desigualdades de condições que possibilitam a formação profissional e acadêmica entre negros e brancos. A distância é notável e imensa em todos esses indicadores. Mas a mais cruel e que sintetiza a realidade do racismo no Brasil vem do levantamento feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacado em matéria do portal Brasil 247, que foi publicada na véspera do dia nacional da consciência negra: a população negra é expressivamente a maior vítima de homicídios no Brasil.
A cada 100 assassinatos registrados no Brasil, 71 vítimas são negras. E cresceu 18% em dez anos analisados pela pesquisa, ou seja, no período compreendido entre 2005 e 2015. De onde vem esse ódio retratado pelos indicadores da violência? Da mesma raiz preconceituosa que discrimina, mata e violenta pobres, mulheres e a população LGBT, com o agravante da impunidade e naturalização dos crimes de racismo.
Se voltarmos a atenção novamente para a educação, nossa esperança transformadora, vamos encontrar ali também algumas explicações para essa problemática de exclusão. O estado brasileiro foi concebido para ser excludente. Vivemos no Brasil sob 300 anos de escravidão da população negra. Fomos o último país a aboli-la e, quando o fizemos, foi de modo a desprezar os libertos. Famílias negras inteiras, escravizadas, eram tratadas como objetos, como coisa e, sendo assim, podiam ser vendidas, comercializadas, transacionadas. Ao abolir a escravatura, o Brasil não incluiu no trabalho os afro-brasileiros, que tanto edificaram a nossa nação e construíram as bases da nossa economia. A classe dominante brasileira foi buscar na Europa a mão de obra (empobrecida e marginalizada) para colonizar o Brasil, trabalhar a terra e embranquecer o território nacional.
Quando o Presidente Lula sancionou tanto a lei 10.639/2003 quanto a 11.645/2008, ele o fez para resgatar a verdade dos fatos e promover justiça social, através do reconhecimento da contribuição da raça negra na formação cultural do nosso povo e na construção da nação brasileira. Porque é preciso entender de uma vez por todas a grandiosidade dessa participação na nossa história. Chega a ser lógico mencionar a contribuição africana na nossa formação cultural, religiosa e artística ou mesmo na projeção da nossa imagem enquanto povo. Mas a História da África e dos Africanos (Ed. Vozes, 2012) nos lembra que os primeiros africanos escravizados a virem para o Brasil já trouxeram para cá técnicas que impulsionaram a agricultura, a pecuária e o combate a enfermidades do mundo tropical que eram desconhecidas para os colonizadores portugueses. A fundição de metais, a produção de utensílios, bem como valores familiares matriarcais e padrões de comportamento político e de organização social também definiram nosso formato de nação.
Nos governos do PT, de Lula e Dilma, o resgate da dívida histórica com nossa população negra não se resumiu aos currículos escolares. Partiu deles, mas também se expandiu para as cotas raciais de ingresso nas universidades, a criação de uma universidade federal em Redenção (Ceará), para promover o desenvolvimento econômico e social daquela região, a primeira do Brasil a abolir a escravidão, e chegou até as diretrizes da nossa política internacional, que o golpe raivosamente veio aniquilar, desmontando as relações diplomáticas estabelecidas e ampliadas, a cooperação e as relações comerciais fortalecidas com os países do continente africano.
Por isso, a celebração da consciência negra é tão preciosa para a nossa identidade e afirmação enquanto povo. Porque ela nos empodera de inúmeras ferramentas de transformação da realidade. Aliás, enquanto no mundo inteiro os 16 dias de ativismo em combate à violência contra as mulheres se iniciam em 25 de novembro e vão até 10 de dezembro, no Brasil essa mobilização dura mais. Começa no dia 20 de novembro, justamente para assinalar a dupla violência sofrida pelas mulheres negras.
Diante dessas razões humanitárias, da compreensão de que o DNA do povo brasileiro é majoritariamente negro e da afirmação de direitos necessária ao nosso desenvolvimento soberano é que se torna imprescindível depositar as esperanças de transformação da realidade na semente da educação. Para, no futuro, quando questionados sobre ‘quem se ofende com a celebração da consciência negra no Brasil?’, podermos responder, por meio do exemplo concreto, expresso na atitude respeitosa e de deferência dos nossos filhos: ninguém!
(*) Gleisi Hoffmann é senadora da República e presidenta nacional do Partido dos Trabalhadores (PT).
19 de Novembro, 2024 às 23:56