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Carta garantiu direitos no campo e nas cidades

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A Constituição de 1988, no entanto, não assegurou o direito à moradia. Ele só foi incluído no rol dos direitos sociais em 2000, pela Emenda Constitucional 26

Em 1988, pela primeira vez na história das Constituições brasileiras, a política urbana foi incorporada a um texto constitucional. Os parlamentares constituintes garantiram a função social da propriedade, exigiram plano diretor para os municípios com mais de 20 mil habitantes, estipularam imposto progressivo para desestimular a manutenção de terrenos ociosos ou subutilizados e instituíram usucapião de cinco anos para área de até 250 metros quadrados.

A Constituição de 1988, no entanto, não assegurou o direito à moradia. Ele só foi incluído no rol dos direitos sociais em 2000, pela Emenda Constitucional 26. E, conforme o sociólogo Adail Carvalho, foi considerado um contraponto importante ao direito de propriedade.

Com apenas dois artigos, as diretrizes constitucionais abriram espaço para a construção de leis importantes, como o Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001), considerado o marco legal da questão urbana no país. Mais tarde, em 2009, a Lei 11.977 criou o Programa Minha Casa, Minha Vida — executado pela Caixa Econômica Federal —, que foi substituída pela Lei 13.465, de 2017.

Retrato

Passados 30 anos, esse arcabouço legal não evitou que as cidades continuassem segregando as populações carentes. A ocupação desordenada dos espaços urbanos persiste. Faltam moradias e infraestrutura, como saneamento e transporte. Em muitas localidades, ainda não há fornecimento de água e coleta de lixo.

As periferias não pararam de inchar, especialmente nas grandes cidades, que acolhem o maior número de migrantes, tanto brasileiros que abandonam o campo quanto refugiados que fogem de guerras e pobreza, como sírios, venezuelanos e haitianos. Muitas edificações estão em áreas de risco, com danos à população e ao ambiente. E o poder público ainda fornece crédito para construções distantes da malha urbana, motivo de uma das principais críticas ao Minha Casa, Minha Vida.

A pesquisa mais recente da Fundação João Pinheiro, de Minas Gerais, sobre o deficit habitacional no país, realizada com dados de 2015 do IBGE, confirma esse quadro desastroso. A falta de moradias nas áreas urbanas chega a 5,6 milhões, especialmente na Região Sudeste, a mais populosa, com carência de 2,5 milhões de domicílios.

A pesquisa mostra que não adianta apenas oferecer novas unidades. Quase 7 milhões de domicílios urbanos não possuem esgotamento sanitário, 4 milhões não têm fornecimento de água tratada, 603 mil não contam com coleta de lixo e 23 mil estão sem energia elétrica.

Mesmo na região brasileira com maior abundância de água doce do planeta, a Norte, mais de 1 milhão de domicílios não têm abastecimento de água. Esse dado é próximo do que acontece na região mais seca do país, o Nordeste, que lidera o ranking dos domicílios sem água tratada, também com mais de 1 milhão de unidades. Além disso, o Nordeste é onde mais falta saneamento, com quase 3 milhões de domicílios desatendidos.

Equívocos nas políticas habitacionais são apontados como os principais responsáveis pelos resultados desse levantamento. Mesmo antes da Constituição de 1988, durante os governos militares, o Banco Nacional de Habitação (BNH), absorvido mais tarde pela Caixa, financiou a construção de conjuntos habitacionais em terras baratas e de localização ruim.

Um exemplo disso foi a Cidade Tiradentes, na capital paulista. Além da monotonia de construções iguais, a falta de um desenho urbano apropriado impediu a variedade de uso, como comércio e equipamentos públicos na quantidade necessária, avalia Evaniza Rodrigues, integrante da União Nacional por Moradia Popular (UNMP), um dos movimentos mais antigos em defesa dos sem-teto.

Relatos de antigos moradores lembram as dificuldades de transporte. Algumas crianças e jovens precisavam caminhar 40 minutos para chegar a um ponto de ônibus, conta Evaniza. Muitos deles abandonaram as salas de aula. Outros moradores perderam oportunidades de emprego. O resultado, diz ela, foi o aumento da marginalidade e da criminalidade.

No Rio de Janeiro, a comunidade da Cidade de Deus passou por processo semelhante. Segundo Evaniza, o objetivo era remover pessoas de áreas centrais da capital e de favelas. A consequência dessa política, acrescenta, foi a segregação dessa população mais pobre e seu confinamento em áreas distantes e com poucas oportunidades, criando guetos.

Minha Casa, Minha Vida

Apesar das iniciativas desastrosas dos grandes conjuntos habitacionais das décadas de 70 e 80, o governo não aprendeu a lição. De acordo com Evaniza, o Minha Casa, Minha Vida repetiu o erro em várias de suas intervenções, com a diferença que a escolha da terra não ficou com o setor público, mas com os construtores, que priorizaram terrenos baratos, nas periferias.

— Se uma pessoa sem recurso vai morar em lugar precário, ela foi para onde pode ir. Mas o absurdo é o Estado financiar soluções com os mesmos problemas — critica Evaniza.

O consultor do Senado Victor Carvalho Pinto, especialista em desenvolvimento urbano, reforça a avaliação. Para ele, o Executivo não se preocupou com a adequada inserção urbana ou articulação metropolitana das obras que financiou, contribuindo, assim, para o espraiamento urbano.

Ele avalia que o Minha Casa, Minha Vida financiou com recursos vultosos a construção de loteamentos, conjuntos habitacionais e até mesmo condomínios fechados distantes da área urbana e carentes de infraestrutura e serviços públicos essenciais.

Retrofit

Os movimentos por moradia popular defendem que as políticas públicas estimulem a construção de pequenos conjuntos habitacionais no meio das cidades. Evaniza explica que eles devem estar inseridos em locais que dispensem a expansão da malha urbana e que há boas experiências em áreas centrais do Rio e de São Paulo.

Outra reivindicação que está na pauta dos movimentos é a reforma e readequação de imóveis antigos, conhecida no jargão da arquitetura como retrofit. Eles usam a ocupação, especialmente de prédios vazios em áreas centrais das grandes cidades, como forma de pressionar prefeituras e governos estaduais e federal a adotarem o retrofit.

O assunto ganhou destaque quando o Edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, ruiu em 1º de maio após um incêndio, provocando a morte de oito pessoas, entre elas duas crianças. Em contraposição a essa tragédia do prédio da União, construído em 1961, há experiências que deram certo.

Localizado também no centro de São Paulo, o Edifício Dandara é uma delas. Na década de 1970, abrigou a Justiça do Trabalho. Depois de ficar vazio por dez anos, foi ocupado em 2008 por integrantes da Unificação das Lutas de Cortiços e Moradias, filiado à UNMP. Com a maior parte dos recursos obtida do Minha Casa, Minha Vida-Entidades, as obras de reforma começaram em 2013 e os ocupantes participaram desde a escolha do material até a administração e a fiscalização da obra. Esse retrofit garantiu 120 unidades habitacionais para pessoas sem moradia.

Desapropriação

De modo geral, a avaliação dos especialistas é de que a Constituição de 1988 produziu efeitos positivos para o desenvolvimento urbano do país. No entanto, há imbróglios que a legislação infraconstitucional não conseguiu resolver. Um deles é o processo de desapropriação, que tem gerado precatórios de elevado valor para os cofres públicos.

— Hoje 100% das desapropriações são feitas na Justiça, o que praticamente inviabiliza o seu emprego como instrumento de política urbana — diz Carvalho Pinto.

O processo começa quando o poder público faz uma subavaliação do valor da área, deposita a quantia e o juiz determina a imissão provisória na posse. Segundo o consultor, o proprietário pode conseguir autorização judicial para levantar até 80% desse valor em espécie e discutir na Justiça o real valor do imóvel no mercado.

Geralmente demora muito até se chegar ao valor definitivo da desapropriação. Com isso, é gerado um “esqueleto” a ser pago pelas gerações futuras, pois o poder público é penalizado com a incidência de juros compensatórios (decorrentes do não pagamento à vista da indenização) e de mora (relativos ao atraso no pagamento). O consultor diz que as cifras podem ser astronômicas, o que leva os governos de todos os entes da Federação a pressionar o Congresso para escalonar os pagamentos dos precatórios.


Além disso, explica ele, com a imissão provisória, o município assume o imóvel e dá a destinação que quer, mas a titularidade continua com o proprietário original. Portanto, acrescenta, não há como transferir o imóvel para o beneficiário final, o que leva os governos a adotarem instrumentos precários de titulação na política habitacional e de regularização fundiária.

Para desfazer esse imbróglio e adotar mecanismos como a mediação e a arbitragem nas negociações entre proprietários e poder público, facilitando e agilizando os acordos de desapropriação para reparcelamento do solo, o Senado aprovou o PLS 504/2013, do senador Wilder Morais (DEM-GO). O texto está agora na Câmara dos Deputados.

Carvalho Pinto explica que o projeto não altera a figura da imissão provisória de posse, mas cria condições para viabilizar acordo entre as partes no curto prazo, contribuindo para evitar a judicialização do processo e a formação de precatórios.

Plano diretor

Previsto no artigo 182 da Constituição, o plano diretor aprovado pelas Câmaras Municipais, obrigatório para as cidades com mais de 20 mil habitantes, deveria ser o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana. Além disso, teria que ser capaz de ordenar as cidades, fazendo com que as propriedades cumpram sua função social. No entanto, segundo especialistas, esse instrumento funcionou bem apenas para alguns segmentos do mercado, como o ramo imobiliário.

— Os planos diretores dos municípios estão longe de promover a justiça socioespacial das cidades. As camadas populares continuam sem moradia, enquanto os condomínios fechados para os mais abastados proliferam e as privatizações dos espaços públicos continuam — afirma o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Orlando Alves dos Santos Júnior, responsável pela mais recente avaliação sobre o instrumento, encomendada pelo Ministério das Cidades.

O especialista, que é pesquisador do Observatório das Metrópoles, diz que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo de até 15% do valor do imóvel, previsto na Constituição para ser empregado nos planos diretores, como forma de desestimular terrenos vazios ou subutilizados, praticamente não é aplicado pelas prefeituras.

As operações urbanas consorciadas, modalidade de parceria público-privada prevista no Estatuto da Cidade, viabilizaram vários empreendimentos por meio de regulações especiais concedidas pelas prefeituras. Um exemplo foi o Porto Maravilha, no Rio, mas o professor da UFRJ diz que o empreendimento não abriga nenhum projeto de habitação de interesse social.

Para Carvalho Pinto, tanto as operações urbanas consorciadas quanto a outorga onerosa do direito de construir, também instituída pelo Estatuto da Cidade, representam um avanço, pois criaram uma separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, o que permitiu a prefeituras cobrarem contrapartidas dos proprietários em caso de aumento do potencial construtivo.

O consultor considera necessário, no entanto, condicionar as operações consorciadas e desapropriações à elaboração de um plano de escala intermediária, complementar ao plano diretor, a ser regulamentado em um futuro sistema nacional de planejamento urbano.


Governo federal reconhece que modelo da reforma agrária se esgotou

Apontado como um dos maiores embates da Constituinte, com mobilizações e até ameaças pessoais dentro do Congresso, como lembra o senador Edison Lobão (MDB-MA), o modelo que opôs trabalhadores sem terra e latifundiários chegou ao esgotamento. Lobão, que integrava o PFL, presidiu a Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária.

Tanto governo quanto especialistas e até mesmo representantes de movimentos sociais concordam que o país mudou. Agora o desafio é encontrar outros caminhos para ocupar a terra adequadamente que não seja a desapropriação em larga escala para promover novos assentamentos, avalia estudo da Consultoria Legislativa do Senado sobre a reforma agrária nos 30 anos da Constituição.

É preciso inserir os assentados no mercado produtivo e dar a eles infraestrutura, tecnologia, assistência técnica e condições de vida e renda para fixá-los no campo. Além disso, as restrições orçamentárias exigem maior eficiência e eficácia nos gastos públicos, e o custo para assentar e fixar as famílias é elevado para os cofres federais.

— Com a crise fiscal e o teto de gastos, a situação se complicou ainda mais — ressalta um dos autores do estudo, o consultor Fernando Lagares.


A pressão dos movimentos dos sem terra e o recrudescimento dos conflitos no campo fizeram os assentamentos aumentarem, como no caso dos massacres de Corumbiara (RO), em 1995, e de Eldorado do Carajás (PA), em 1996, que levaram o governo de Fernando Henrique Cardoso a aumentar os assentamentos. O ápice foi em 1997, quando 81,2 mil famílias foram assentadas.

Os dados mais recentes do Incra mostram que foram assentadas 971 mil famílias em 9.389 projetos espalhados em mais de 88 milhões de hectares em todo o país. O ouvidor agrário do Incra, Jorge Tadeu Jatobá Correia, diz que o foco hoje é consolidar o que já existe. Ele confirma a exaustão do modelo e situa o declínio a partir de 2011, quando houve um decréscimo expressivo no número de famílias assentadas. A pior marca foi a de 2016, com apenas 988 famílias assentadas.

A avaliação, segundo ele, é de que, apesar da existência do Programa Nacional de Reforma Agrária, falta um planejamento mais amplo para inserir os assentados no processo produtivo, levando em conta as características regionais e a baixa capacidade de investimento das famílias. Muitas delas não conseguem sair da tutela do Estado, segundo o consultor Eduardo Simão Vieira, que também participou do estudo do Senado.

No entanto, para o atendimento das pressões dos movimentos sociais no campo, muitas desapropriações ocorreram em áreas de localização ruim, algumas com deficiência de água e sem energia elétrica, distantes de estradas asfaltadas, escolas, postos de saúde e hospitais. Ou seja, sem condições mínimas para o bem-estar das famílias e o escoamento da produção.


Irregularidades

Uma fiscalização do Tribunal de Contas da União (TCU) realizada em 2015 e 2016 revelou vários problemas no cadastro do Incra e outros indícios de irregularidades entre os beneficiários do Programa Nacional de Reforma Agrária. O resultado da auditoria apontou que quase 480 mil concessões de terra tinham alguma irregularidade.

Identificou-se que 2,1 mil menores de 18 anos estavam cadastrados como beneficiários, 145 mil eram servidores públicos, mais de mil possuíam mandatos eletivos e 62 mil eram empresários. O TCU encontrou 38 mil casos de recebimento de lotes por pessoas mortas e identificou assentados fora do padrão de renda do programa, alguns inclusive donos de veículos de luxo.

Uma auditoria anterior, de 2014, realizada pela Controladoria-Geral da União (CGU), hoje Ministério da Transparência, já havia acusado falhas. Muitas famílias, cerca de 26%, não tinham conhecimento de que haviam assumido uma dívida quando contrataram o crédito de instalação do Incra, uma linha de financiamento a juros subsidiados para ajudar os assentados. E pior: o relatório mostrou que o Incra não cobrava essas dívidas, que chegaram a somar mais de R$ 7 bilhões até 2013.

As auditorias evidenciaram que o modelo de reforma agrária com base em desapropriações e assentamentos precisava ser repensado e o Incra passou a buscar alternativas. Recentemente, ampliou o crédito de fomento para as mulheres, de R$ 3 mil para R$ 5 mil, para que elas possam gerar renda em atividades como artesanato, processamento de polpa de fruta etc. Segundo Correia, há experiências interessantes como a de um grupo de mulheres que se reuniu e fundou uma padaria em um assentamento no Nordeste.

Assistência técnica

Outra intervenção do órgão, acrescenta ele, foi no maior apoio aos assentados na busca por mecanização, tecnologia adequada à pequena produção e assistência técnica. O ouvidor afirma que o objetivo é cada vez mais preparar a migração dos assentados para o programa de agricultura familiar, o Pronaf.

Correia informa ainda que o crédito fundiário, pelo qual as famílias assentadas identificam as áreas em que querem se instalar, está sendo reformulado. O governo também está estudando como usar os imóveis rurais que foram incorporados ao patrimônio da União em ações de execução fiscal.