A lei eleitoral vigente hoje no país chega à maioridade. Em vigor desde 1997, de lá para cá a Lei 9.504 passou por diversas modificações, as mais significativas justamente nos últimos anos. Esse é o ponto de vista defendido pelo consultor legislativo Gilberto Guerzoni, especialista em direito eleitoral e no modelo político brasileiro.
Nesta entrevista concedida à Agência Senado, são abordadas as maiores mudanças percebidas pelos brasileiros no atual processo eleitoral. São tratados temas como a diminuição de recursos financeiros à disposição dos partidos, o tempo menor de propaganda na TV e nas ruas, as perspectivas de menor renovação no Parlamento e aspectos gerais sobre a cultura política dominante no país que se refletem na lei.
Agência Senado — Hoje há uma percepção majoritariamente negativa por parte da sociedade quanto ao modelo político brasileiro, algo que é reconhecido inclusive pelos próprios partidos e pelos políticos. Por outro lado, especialistas apontam que as mudanças feitas na lei eleitoral dificultam a renovação, em parte devido à gestão do fundo eleitoral e o tempo menor de campanha. Você concorda com essa análise?
Gilberto Guerzoni — Quando se diz que as regras atuais podem dificultar a renovação nos Parlamentos, tanto no nível nacional quanto nos estados, isso é verdade. Mas o que nós vimos, por exemplo, em processos eleitorais nas décadas de 1990 ou após, quando os índices de renovação para a Câmara dos Deputados passaram de 50%, 60%, é que houve naqueles casos uma mudança de parlamentares, mas não de perfil, de prática ou de atuação política. Esse perfil não se alterou porque os Parlamentos têm conseguido, sim, refletir as principais tendências verificadas na sociedade brasileira.
Alguns atores na mídia e de outros setores sociais muitas vezes pregam que o Congresso não representa o país, mas será que isto é realmente verdadeiro? É óbvio que nosso processo eleitoral necessita de ajustes e passa por eles continuamente, como ocorre em qualquer democracia, mas não compactuo com visões catastróficas.
É importante ressaltar que nosso processo eleitoral mantém-se democrático, a despeito das disfuncionalidades. Você pode até não gostar da imagem que está vendo no espelho, mas a culpa nesse caso não vai ser nunca do espelho.
Agência — Mas você admite em sua resposta que o atual modelo necessita de ajustes. Por exemplo, especialistas também têm apontado que será mantida a pulverização partidária, com muitos partidos representados na Câmara e nas assembleias, o que causa desafios à governabilidade. Como você avalia este aspecto?
GG — A questão da fragmentação partidária sem dúvida é um problema, mas não vai ser resolvida de forma artificial. Também aí o debate é mais político, é mais profundo. Tanto que nos últimos anos a multiplicação de partidos que vimos surgir no cenário foi conseqüência da obrigação da fidelidade partidária, imposta pelo STF. Isso forçou a classe política a buscar saídas, e a principal delas se deu na abertura de novas legendas.
Em resumo, o Judiciário estabeleceu restrições para que um deputado mude de partido (a fidelidade só vale para cargos proporcionais), mas ao mesmo tempo foi incentivada a infidelidade, porque novas legendas foram criadas. É importante ressaltar que, nas democracias mais consolidadas, a fidelidade não é imposta por lei. No fundo, esse é um problema da cultura política dominante e dos eleitores.
Agência — Mas agora, pela primeira vez, passa a valer uma cláusula de desempenho (Emenda Constitucional 97). Um partido terá que ter pelo menos 1,5% dos votos válidos para a Câmara para ter acesso ao fundo partidário e ao tempo de TV e rádio. Você acha que isso pode resultar em menor fragmentação partidária no futuro?
GG — Essa não é uma cláusula de desempenho típica. A cláusula de desempenho típica impede que um partido eleja qualquer representante ao Parlamento caso não atinja uma votação mínima. O modelo adotado agora no Brasil é bem mitigado, pois mesmo com uma votação baixa, um partido continuará elegendo deputados. Ele perde de fato acesso ao fundo partidário e ao tempo de TV e rádio.
Mas vejo um problema sério aí, porque isso pode ser entendido como uma restrição não razoável à liberdade partidária. Porque na prática vai impedir que qualquer partido criado daqui para a frente tenha acesso à propaganda na TV e ao fundo. Há poucos anos o STF derrubou uma cláusula de barreira para a Câmara porque a considerou não razoável no que se refere à manifestação de novos partidos. Vejo um risco semelhante agora, a despeito de ter sido feita por emenda à Constituição.
Agência — Então talvez a proibição das coligações, que vai valer a partir de 2020, é que deva levar a uma menor fragmentação partidária nos Parlamentos.
GG — Isso vai ter uma eficácia bem maior nesse sentido, sem dúvida. Mas é bom lembrar que não haverá um quociente eleitoral mínimo para os partidos atingirem, então vai limitar o acesso, mas o fato de não haver esse quociente mínimo vai diminuir a dificuldade também.
Agência — O atual processo eleitoral também é marcado por um modelo novo de propaganda na TV e no rádio. Mas têm surgido reclamações de que apenas candidatos de grandes partidos, ou com coligações amplas, conseguem ter um tempo razoável para apresentar suas propostas e políticas. Como você avalia esse aspecto?
GG — Na verdade, a distribuição de tempo entre os partidos sempre foi desigual. O problema é que o atual processo eleitoral é marcado por um número bem maior de candidatos, e o tempo do programa ficou menor. Mas, nesse caso, é importante ressaltar que se o tempo do programa diminuiu, o número de inserções de propagandas dos candidatos durante a programação diária nas TVs e nas rádios dobrou.
É claro que os partidos pequenos saem perdendo. Mas a diminuição do tempo do programa eleitoral foi uma resposta ao fim do financiamento privado e a necessidade de custos menores para as campanhas. Ao mesmo tempo, é impensável adotar um modelo em que todos os partidos tenham tempos iguais de propaganda. Esse é um desafio da democracia, deve ser garantido o acesso de todas as correntes políticas à TV; porém, não devemos incentivar que legendas de aluguel negociem esse ativo na formação das coligações.
Essa mudança, aliás, está em consonância com a proibição das coligações nas eleições proporcionais, a partir de 2020. Busca-se diminuir o poder de barganha das legendas de aluguel. Por outro lado, também é importante ressaltarmos que a mídia tradicional já não é mais tão hegemônica, tanto que candidatos com pouco tempo de propaganda em muitos casos aparecem na frente de outros com grande tempo de propaganda...
Agência — Outra mudança na lei é que agora todos os candidatos são formalmente os responsáveis pela prestação de contas das suas campanhas. Você avalia que a mudança foi conseqüência de investigações como a Lava Jato e outras conduzidas pela Polícia Federal e o Ministério Público?
GG — Sim, está dentro do contexto de coibir práticas de caixas 2 e similares e aumentar a transparência sobre os gastos das campanhas. Mas tão relevante quanto isso é que a prestação de contas hoje pode se dar quase em tempo real. A Justiça Eleitoral já tem aplicativos em que é possível aos eleitores acompanhar esses gastos para todos os candidatos.
Agência — E o Fundo Eleitoral de Financiamento das Campanhas (FEFC), que é mantido com recursos públicos? Ele é criticado por muitos setores da sociedade, que vêem este fundo como um desperdício. Este ano ele destinou R$ 1,7 bilhão aos partidos. Isso é suficiente? Como equilibrar a questão, já que não há mais o financiamento privado?
GG — Além do FEFC, há o Fundo Partidário, que este ano destinou cerca de R$ 800 milhões. Também há outras fontes, como o financiamento por pessoas físicas e o autofinanciamento.
É visível para todos que hoje as campanhas são mais pobres, os custos caíram porque não há mais o dinheiro das empresas. Não sei se já é possível fazermos uma avaliação sobre o atual modelo de financiamento... Muitos especialistas apontam que ele dificulta justamente a renovação da política, porque apenas os grandes partidos terminam por ter acesso a recursos maiores. Só depois das eleições é que acredito que a sociedade poderá realizar uma avaliação de fato mais abalizada.
As eleições municipais de 2016 demonstraram que não era possível realizar um processo eleitoral sem um fundo próprio de financiamento. Mas também nesse caso é preciso esperar o fim do atual processo, para que tenhamos um balanço mais amadurecido sobre o FEFC.
Artur Hugen, com Agência Senado/Foto: Waldemir Barreto/AS
19 de Novembro, 2024 às 23:56