texto “A esquerda não petista”, do sociólogo Celso Rocha de Barros, publicado na Folha de S. Paulo de 15 de abril, levanta um debate muito importante neste momento: a indefinição política no campo progressista. Ele afirma que “a derrota do Partido dos Trabalhadores na eleição presidencial de 2018 abriu a competição pela liderança das esquerdas”.
Concordo com sua visão. De fato, as eleições de outubro promoveram uma transformação no cenário e o PT está resgatando a postura radical da década de 1980, o que pode fortalecer políticos mais moderados.
O PT de hoje é diferente do PT que ganhou as eleições presidenciais em 2002, com Lula presidente e com o empresário, fundador da Coteminas, José de Alencar, como vice.
Aquele PT, que fez uma heterogênea coligação com conservadores, como o PL e o PMN, além de obter apoio de grupos ligados a outros partidos conservadores, como o PP, o PTB e o PMDB, mostrou que estava pronto para trabalhar com outros setores da sociedade, além do seu nicho de esquerda, e conseguiu chegar à vitória e governar tentando ser progressista num mundo capitalista.
Ao que parece, no entanto, aquela disposição política já ficou para trás. Uma matéria da revista Época, de 8 de abril, sobre a caravana “Lula Livre com Haddad”, realizada no Sul entre 5 e 7 de abril, mostra que a estratégia petista, após perder a eleição em outubro, baseia-se “num resgate do modelo adotado nos anos 80”.
Tal modelo baseava-se em coligações muito restritas e em discursos muito radicais. Os anos 80 do PT começaram com a disputa das eleições de 1982, sem coligações, e terminaram com Lula disputando a Presidência, em 1989, com a coligação Frente Brasil Popular, composta por PT, PSB e PCdoB.
Ainda assim, conseguiu-se ultrapassar partidos mais experientes e chegar ao 2º turno. O retorno da democracia era recente. Havia mais de 20 anos que os brasileiros não iam às urnas. E, embora Lula tenha perdido para o novato Fernando Collor de Mello, o partido ganhou projeção e experiência.
Depois de 13 anos daquela eleição, um PT mais maduro consagrou sua gloriosa vitória nas urnas, iniciando um impressionante ciclo de desenvolvimento econômico e social no país. É claro que o afã do governo em abraçar brasileiros acostumados a subsistir à margem do sistema, com programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, além de uma política econômica mais preocupada com investimentos no bem-estar social do que com o ajuste fiscal, incomodou setores da elite que temiam perder privilégios. E o governo, desde o início, sofreu intensa perseguição e ataques de toda ordem.
O que me interessa aqui, entretanto, não é descrever como as forças de oposição atuaram. O ponto é que, em algum momento da Era PT, os governistas passaram a adotar uma postura ainda mais fechada com os demais partidos e aquela aparente harmonia social e fluidez política se quebraram.
No livro “A verdade vencerá” (Editora Boitempo, 2018), Lula reconhece que a ex-presidente Dilma Rousseff “cometeu muitos erros (…) pela pouca vontade que tinha de lidar com a política”. Em seu 2º mandato, iniciado em janeiro de 2015, o perfil intransigente de Dilma Rousseff foi agravado pelo que Lula chamou de “forçação de barra para tentar separar os 2 governos” (o de Lula e o de Dilma).
Um ponto crucial deste processo foi a nomeação de Joaquim Levy para a Fazenda. Levy, como ministro, tinha um perfil muito liberal para o padrão do PT. Ele defendia o ajuste fiscal e cortes em investimentos sociais, na contramão de promessas de campanha de Dilma. Para o ex-presidente isso a deixou “desacreditada”.
Lula cita também a proposta de reforma da Previdência, apresentada em 29 de dezembro de 2014, como fator de grande perda de credibilidade: “A militância e o movimento se sentiram traídos e a oposição usou isso, taxando de estelionato eleitoral”.
Em pouco tempo a aprovação do governo Dilma despencou para 8%, a mesma de Fernando Henrique em 1999, conforme apontou Lula. Segundo ele, porém, FHC tinha em seu favor Michel Temer na presidência da Câmara e Marco Maciel como vice-presidente. Eram fiéis a ele. Dilma tinha Eduardo Cunha comandando a Câmara e minando todas as ações do Executivo e o mesmo Michel Temer de FHC, neste caso como um vice “traidor”.
Nos últimos anos o governo de Dilma Rousseff tornou-se cada vez sectário com um discurso com menos influência da composição de outrora. O desfecho, já conhecemos. Agora, apesar de tudo, o partido ainda fala em resgatar o modus operandi de sua infância e adolescência. Na década de 1980 fazia sentido para um partido recém-criado ser sectário.
Hoje não faz. Desejo de ampla unidade do campo democrátidco
No fim de março de 2019, um encontro entre Fernando Haddad, do PT, Guilherme Boulos e Sonia Guajajara, do Psol, Flávio Dino, do PC do B e Ricardo Coutinho, do PSB, revisitou a aliança de 1989, somando ao grupo o PSOL, fundado em 2004, como uma dissidência do PT.
A reunião era para promover a “unidade do campo progressista”. Produziram uma nota na qual criticam “retrocessos sociais” do governo de Jair Bolsonaro, afirmam que “não se justifica a manutenção da prisão de Lula sem condenação transitada em julgado” e, por fim, expressam “o desejo de ampla unidade do campo democrático para resistir aos retrocessos e oferecer propostas progressistas para o Brasil”.
Quando soube do encontro e da nota, através de grupos de WhatsApp, fiquei a pensar qual é campo democrático que temos hoje. Entendo que este campo deveria se dedicar a construir uma agenda que agregue políticos interessados no crescimento do país e não se pautar em uma agenda que é cara ao PT, mas que divide a esquerda, como o “Lula livre”, embora a prisão de Lula seja um fato político injustificável (que pode ser tema para outros debates).
A história recente e a maturidade que dela advém deveria impulsionar os partidos interessados no crescimento do país a, com grandeza, buscar relações para além do PT, PSB, PC do B e Psol. Em seu artigo, Celso Rocha de Barros afirma que “é muito bom, enfim, que haja novas forças progressistas disputando com o PT”. Digo mais: a confusão entre o PT e a esquerda deve ser superada.
Com o vácuo político e a falta de projetos que constituem o governo de Bolsonaro, políticos mais sérios precisam ocupar os espaços com propostas avançadas, verdadeiras e viáveis. Se o chamado campo progressista se postar diametralmente à esquerda com relação ao governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, apostando em uma política bipolar e idiossincrática, não vamos superar essa situação de obscurantismo em que nos enfiamos.
Artur Hugen, com Poder/360/Foto: Sérgio Lima
19 de Novembro, 2024 às 23:56