Quem sonhava obter financiamento como parte da estratégia rumo ao diploma universitário viu criar-se um cenário de grande incerteza a partir das reviravoltas na política e na condução da economia.
Planejar de maneira mais segura a vida acadêmica e profissional exige no momento informação sobre taxas de juros, prazos de pagamento e carências. No redesenho dessa política pública que está sendo feito pelo governo e o Congresso muitas regras vão mudar.
As propostas encaminhadas pela gestão Temer para o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) estão mobilizando intensamente o trabalho de senadores e deputados. Apresentada em 7 de julho, a Medida Provisória 785/2017, que trata da reforma do Fies, recebeu 278 emendas, de autoria de 51 deputados e 6 senadores.
A comissão mista que analisa a MP já discutiu o texto em audiências públicas interativas com representantes das mantenedoras, dos estudantes, das instituições financeiras e do próprio governo.
O senador Dalírio Beber (PSDB-SC), presidente da comissão mista, explicou que as novas regras para o financiamento estudantil vão adequar o programa às atuais condições econômicas do País. Segundo ele, a intenção é garantir que o financiamento estudantil seja uma política permanente.
— Todos nós sabemos das dificuldades que tem o país. Existe uma profunda crise fiscal. E o Fies também está inserido nesse contexto. É necessário que reconheçamos que algumas coisas deverão ser acertadas no programa. E elas estão sendo propostas pelo governo e certamente outras virão como contribuições durante o debate da medida provisória na comissão mista e depois na Câmara e no Senado.
A questão fiscal é a principal preocupação do governo e a edição da MP 785 foi antecedida pela divulgação de um diagnóstico elaborado pelo Ministério da Fazenda, que descreve o impacto do Fies sobre as contas públicas e aponta causas para ausência de sustentabilidade fiscal do modelo vigente. O órgão da área econômica assinala que o número de contratos do Fies em utilização passou de 182 mil em 2009 para 1,9 milhão em 2015, um acréscimo de 280 mil matrículas em média por ano. A maior parte desse aumento ocorreu a partir de 2012, quando o fluxo de novos contratos cresceu consideravelmente, chegando a 733 mil novos em 2014 (veja gráfico). Em relação às matrículas na rede privada, os contratos pelo Fies passaram de 5% em 2009 para 39% em 2015.
A causa para esse forte aumento, segundo a Fazenda, foi a oferta de condições financeiras mais benéficas para o estudante trazida pelas mudanças no programa feitas em 2010. Segundo o relatório, essas condições mais favoráveis “permitiram um crescimento em ritmo incompatível com a disponibilidade de recursos no médio e longo prazo, bem como a transferência de parcela relevante dos riscos de financiamento ao setor público”.
Os cálculos apresentados pela equipe econômica apontam que o impacto do Fies sobre o patrimônio público alcançará R$ 11,1 bilhões em 2024, somando as despesas administrativas e o que é gasto com subsídio implícito nos juros, considerados os contratos que ingressaram no programa entre o primeiro semestre de 2010 e o segundo semestre de 2016.
Durante a cerimônia de anúncio do novo modelo do programa no Palácio do Planalto, o ministro da Educação, Mendonça Filho, disse que as regras propostas possibilitarão uma governança austera e sólida e uma gestão sustentável do Fies.
“Tínhamos um rombo fiscal sem controle e imprevisível, com inadimplência elevada na carteira de 46,4%, ante uma previsão de 10%. O risco do crédito era totalmente concentrado no Tesouro Nacional”, afirmou na ocasião o ministro.
A MP 785 traz mudanças em seis leis. Altera as formas de concessão e pagamento do financiamento; altera o modelo de gestão, criando o Comitê Gestor do Fundo de Financiamento Estudantil (CGFies); e inclui como fontes de recursos para o Fies os Fundos Constitucionais do Centro-Oeste (FCO), Nordeste (FNE) e do Norte (FNO).
Pela proposta do governo, a partir de 2018 a concessão de financiamentos pelo Fies terá três modalidades. Na primeira, serão até 100 mil vagas para estudantes com renda familiar de no máximo três salários mínimos. As mensalidades serão isentas de taxa de juros real e o financiamento bancado com recursos do Tesouro. Para as outras duas modalidades, voltadas para estudantes com renda familiar entre 3 e 5 salários mínimos, as taxas de juros serão de 3%, mais correção. Nessas duas modalidades, serão oferecidas 150 mil vagas para as regiões Norte e Nordeste e Centro-Oeste com recursos dos fundos constitucionais regionais, e outras 60 mil para o restante do país, com recursos do BNDES ou de bancos privados. As taxas de juros anunciadas pelo governo, no entanto, não constam do texto da MP sob a justificativa de que isso tornaria mais difíceis mudanças na regra diante de novos cenários econômicos, prejudicando a gestão dos recursos e da política.
O início da amortização será imediato após a conclusão do curso e o governo está propondo que o desconto das prestações possa ser feito diretamente no contracheque do beneficiário, logo que ele adquirir seu primeiro emprego formal. O desconto direto será limitado a 10% dos rendimentos. Caso a pessoa não tenha renda formal após a conclusão do curso, ela continuará pagando a taxa de coparticipação que já era paga ao longo dos anos de estudo.
Os debates entre parlamentares e representantes dos setores afetados durante as audiências públicas já realizadas mostram, em linhas gerais, uma concordância sobre a utilidade do Fies para melhorar os indicadores da educação no país e a necessidade de se dar sustentabilidade fiscal ao programa. Mas as medidas específicas encontram resistência.
Na avaliação da senadora Fátima Bezerra (PT-RN), o governo erra ao estabelecer o número máximo de contratos custeados pela União. Ela também criticou a extinção da carência de 18 meses para que os estudantes comecem a pagar as prestações após a formatura.
— Nós não podemos aceitar mudanças como ele está fazendo agora de reduzir os investimentos da União na medida em que ele limita a oferta de vagas a apenas 100 mil. Isso está na contramão, você não pode tratar os desiguais de forma igual. Você tem que ver as condições dos estudantes e de suas famílias para os quais estão dirigidos programas dessa natureza, protestou.
As discussões na comissão mista mostram uma tensão entre duas visões de financiamento estudantil: como política educacional ou como operação econômica. Luiz Claudio Costa, ex-presidente do Inep e ex-ministro da educação argumentou que não se pode esperar um retorno integral desse tipo de crédito.
— O Governo nunca pode ter 100% do que colocou, porque, senão, não estamos falando de algo subsidiado; nós estamos falando de operação financeira. Como é algo subsidiado, algo em que o Estado brasileiro está investindo, eu imagino que um Fies equilibrado vai investir x e vai receber 0,7%, 0,6%, 0,5% de x. Tem de ser assim. Isso é assim em qualquer política que tenha o cunho social de inclusão, porque é uma dívida que, se for corrigida da forma que se faz com todas as dívidas econômicas, é impagável, porque é de longo prazo, não há a perspectiva de empregabilidade depois, não se sabe como vão ficar os juros, explicou.
Costa acrescentou que os recursos destinados ao Fies correspondem a menos de 3% de todo o cre?dito pu?blico ofertado pelo Estado brasileiro, algo em torno de R$ 1,7 trilhão.
De acordo com a MP 785, as universidades que antes contribuíam com 6,5% para o fundo garantidor do Fies, agora passarão a contribuir com 13% no primeiro ano. Mas a contribuição pode variar entre 10% e 25% entre o segundo e o quinto ano do curso. A capacidade do fundo garantidor de absorver contratos inadimplentes vai passar de 10% para 25%. Mas se o índice for maior, o custo será repassado para as universidades privadas. O deputado Moses Rodrigues (PMDB-CE) acredita que o aumento da contribuição pode inviabilizar a participação das escolas no programa.
— O Governo pode até disponibilizar 500 mil, 600 mil, 700 mil vagas, mas as instituições só têm duas saídas: aumentar o valor da mensalidade, o que não é justo para o estudante, ou não fazer a adesão, porque não vai conseguir a sustentabilidade financeira, porque vai estar contribuindo com muitos recursos já na fonte para a manutenção e a garantia dessa inadimplência, argumentou o parlamentar.
A vice-presidente da Associação Nacional das Universidades Privadas (Anup), Elizabeth Guedes, argumentou que os que tomam empréstimo com o Fies não devem nada ao Brasil.
— No Fies atual, com a formatura desses alunos, só o que eles passam a pagar de impostos federais, estaduais e municipais é 4,3 vezes maior que o custo do programa para o Governo. O que se gera de riqueza – não estou falando de produtividade, estou falando de recolhimento de imposto – é muito maior que o custo do programa para o país, calculou.
A representante da União Nacional dos Estudantes (UNE) Bruna Brelaz defendeu a necessidade de regulamentação e aperfeiçoamento do Fies, porém deixou claro que as alterações devem ocorrer em prol do estudante. Ela destacou a atual crise econômica e a modificação da medida para acabar com o prazo de carência.
— Essa diminuição do prazo de carência nos preocupa muito por que prejudica o estudante que precisa estruturar a sua vida profissional após o término da graduação. É contraditório com o período em que estamos vivendo de crise econômica. Hoje o estudante sai da universidade e não consegue um emprego em três meses ou até mesmo em um ano – disse.
A possibilidade de aumento de mensalidade e taxas extras fora do valor financiado por parte das universidades privadas também foi um ponto levantado por Bruna Brelaz. Ela apontou a necessidade de um ensino superior de qualidade não só nas universidades públicas mas como também nas particulares.
Catarina de Almeida, que é do Comitê DF da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, vê na discussão da MP uma oportunidade para discutir a permanência ou não do programa de empréstimo subsidiado, que gira em torno de R$ 24 bilhões por ano, ou se vai se pensar numa ação a longo prazo que possa inclusive expandir a educação superior pública.
— Temos a Meta 12 do PNE que define que devemos aumentar em 50% o número de vagas na educação superior durante o decênio do PNE, sendo que, desses 50%, 40% das novas vagas precisam ser nas universidades públicas. As universidades federais precisam praticamente dobrar o número de vagas nos próximos dez anos. Hoje, estamos fazendo o inverso, diminuindo o número de vagas, por conta do corte que temos tido no financiamento da educação superior pública. Vamos continuar investindo na expansão do Fies ou vamos voltar também os olhos para as universidades públicas federais?, questionou, acrescentando que hoje há quase 1 milhão a mais de alunos financiados pelo Fies do que o número de alunos matriculados nas instituições públicas federais.
O diretor de Negócios da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Rafael Baldi, destacou a criação da modalidade Fies 3, com utilização dos fundos constitucionais de desenvolvimento e do BNDES. Ele afirmou que o enquadramento dos alunos deve ser aperfeiçoado, e destacou a inadimplência no fundo de financiamento, que atinge até 51,4%, o que inviabilizaria o lançamento de qualquer modalidade de refinanciamento, até mesmo pelo setor financeiro.
— Tem que ficar claro para o aluno que é um empréstimo, não bolsa. O aluno tem dificuldade em saber do saldo devedor, o que pode contribuir para a inadimplência. Há desconhecimento do aluno, que tem que ser informado quanto à evolução de sua dívida — declarou.
Representante da Ideal Invest, que atua no financiamento estudantil há 11 anos, Carlos Furlan disse que a modalidade só vai ser grande e produtiva no Brasil se contar com o esforço combinado do poder público e da iniciativa privada. A modalidade de financiamento, observa, é diferente do crédito pessoal, pois o aluno não consegue pagar a taxa de juro cobrada no crédito pessoal, e também do financiamento de imóvel ou carro, porque o aluno não tem o bem para dar como garantia.
— A análise de crédito universitário não pode ser rasa. Dos mais de cem mil alunos a quem já concedemos financiamento, 88% tem até 3 salários mínimos per capita de renda familiar, que fica entre oito e onze mil reais por ano. A gente oferece taxa de juro extremamente competitiva, de 14% ao ano, graças à parceria mantida com as instituições de ensino, que subsidiam uma parte do juro dos alunos — afirmou.
Artur Hugen, com André Falcão, da Agência Senado/Fotos: Geraldo Magella e Waldemir Barreto/AS
19 de Novembro, 2024 às 23:56